segunda-feira, 21 de maio de 2012

Altitude: de Cuzco a Huaraz, a lição da natureza peruana

Fernando Torres (Jornalista)

Separadas por dois anos, minhas experiências com altitude no Peru foram distintas. Dos efeitos devastadores do soroche ao trekking mais difícil desses meus 28 anos, a natureza e os peruanos me deram uma série de lições.


Em janeiro de 2010, a missão Peru chegou a Cuzco após 23 horas de ônibus – Cruz del Sur, excelente empresa – desde a Lima, que fica a nível do mar. Chegando à antiga capital do Império Inca, localizada a 3.400 metros de altitude, fui recepcionado com um bule cheio de chá de coca. Tomei duas xícaras e acreditei que já estivesse pronto para tudo. No mesmo dia, fiz caminhadas pela cidade e comi muito – a mesma quantidade do cotidiano, no Rio de Janeiro – para aproveitar a incrível culinária cuzqueña.


Teve de tudo nas refeições. No jantar anterior à viagem de trem até Águas Calientes (último povoado antes de Machu Picchu), ainda ousei, experimentando uma panqueca deliciosa de doce de leite. Veio o dia seguinte e o corpo cobrou a conta. Diarreia fulminante, que só foi minimizada por muitas doses de Electroral, soro pediátrico comprado nas farmácias de Cuzco. Foram duas noites infernais, com direito à febre de 40 graus, na madrugada de Águas Calientes. Depois de litros de Electroral, Gatorade e um pedido especial aos deuses Inca, fui “abençoado” com uma melhora que permitiu curtir ao máximo na cidade de Machu Picchu.



O detalhe importante é que ignorei as informações dos guias turísticos e as conversas que tive com os peruanos, ainda em Lima, sobre as estratégias para escapar do soroche (mal da altitude). Uma vez acima dos 2.000 metros, há duas dicas fundamentais. Um: use o primeiro dia para descansar e dar ao corpo a chance de se adaptar ao ar rarefeito, que tem o nível de oxigênio reduzido. Dois: coma um terço do que está acostumado, pois o metabolismo também é prejudicado pela altitude. Assim, se o indivíduo fica empanturrado, como eu fiquei, o organismo não dá conta. Aí, três litros de Electroral serão só o começo.



Com esse aprendizado na mente, voltei ao Peru, em maio de 2012, para explorar Huaraz, cidade ao Norte de Lima que pode ser considerada o principal point do trekking e montanhismo no país. Está no alto dos 3.000 metros e é “só a base” para as atrações mais altas do entorno. Escaldado depois da diarreia de 2010, investi o primeiro dia no repouso. Após 8h de viagem desde Lima, mais uma vez com a Cruz del Sur, andei um pouco pelas ruas inclinadas, contratei o transporte para as aventuras dos dois próximos dias e fiquei no albergue La Cabaña descansando, respirando fundo e pedindo desculpas antecipadas às minha pernas. Almocei uma truta grelhada com legumes e, à noite, tomei um Gatorade. E só. Por mais que as sobremesas foram tentadoras...



Manhã iniciada e parti ao Nevado Pastoruri, um glaciar que está desaparecendo (soma de mudança climática com lixo produzido pelos visitantes desrespeitosos) e prestes a deixar órfã a Cordillera Blanca, uma cadeia de montanhas decoradas por gelo + neve. Até os 4.500 metros de altitude, cheguei na van. Os outros 500 metros acima do nível do mar teriam que ser completados com 1,5 km de caminhada. Masquei cinco folhas de coca e iniciei a subida. A cada 10 minutos, uma parada para 15 inspiradas profundas, lembrando aos pulmões que ainda existia oxigênio no ambiente. Um gole na água ou no Gatorade e, com outras quatro escalas semelhantes, a meta foi alcançada. Na volta, almoço com uma sopa de truta. Energética, leve e gostosa.



Noite de sono agradável e, às 6h do outro dia, levantei com o Lago 69 na cabeça. A previsão era de 18 km de trekking (9 km cada perna) acima dos 4.200 metros de altitude. Antes de chegar ao ponto de partida da caminhada, passei de van pelo Llanganuco, lindo lago aos pés do Huascarán, maior pico do Peru, com 6.768 metros.



Pés, literalmente, na estrada e o sonho 69 foi iniciado. Reforçado pelo café da manhã (dois pães e uma xícara de chá de coca), rumei à primeira parte do trekking, com uma hora e meia de caminhada pelos campos. A montanha surgiu e, no mesmo pacote, subidas íngremes por uma trilha de pedra e cascalho solto. Passadas duas horas, a já íntima altitude colocou as mangas de fora. O ar entrava queimando as narinas num ciclo crescente. A força das pernas não rendia como 2 km atrás.



O perrengue de Cuzco veio à mente e lembrei que o respeito aos limites e à supremacia da natureza deveria ser a prioridade. Não desisti, mas optei por pausas fundamentais para superar a fase do montanhismo e o efeito do falso pico: você aposta que vai achar o que procura no alto do monte que está subindo, mas quando chega no fim deste, vê que era apenas uma parte do desafio e muito ainda está por vir.




Quatro horas e meia e 9 km depois, o Lago 69 brindou meus olhos com uma paisagem, no mínimo, impressionante. Os azuis da água, mais fortes e imponentes do que o azul do céu, emolduram a montanha e os glaciares, que alimentam o próprio lago através de cachoeiras filhas do derretimento normal e cíclico dos blocos de gelo eterno. O retorno me consumiu duas horas e meia e toda a energia que restava nas pernas. Satisfeito com meu desempenho, exausto e torrado pelos raios solares amplificados, aprendi na marra que respeitar a altitude e seus efeitos é a melhor opção para o corpo. E a mente.



Publicado, originalmente, no Blog Sem Destino.